domingo, 7 de dezembro de 2014

TOM JOBIM MORRE EM NOVA IORQUE (1994)



I

Dizias, com tuas blagues,
admirando as alturas
dos prédios de Nova Iorque,
ser essa uma tal cidade

“pra se contemplar de maca...”
Incrível, o teu cadáver,
sem pasmo de arquitetura,
adivinhava uma placa

ali, da morte futura.
No céu do sertão, já eu,
surpreso da mesma morte,

não pude achar-te a estrela
que manda o lugar-comum...
Eram muitas; eu, nenhum.


II

Há céu? Ofusca.
Estrela, escava
alguma música,
qualquer palavra

que traga sono
a quem não dorme.
Inútil, longe,
teu corpo enorme...

Chegam de fusca:
por que tão triste
sem ser parente

− sem ser parente?
Estrela, insiste!
Há céu? Te busca!



III

A blague,
o céu:
cidade
e eu;

a nova,
a morte:
a cova
iorque.

Sertão
ardendo;
à noite, 

o frio...
Tremendo, 
o rio.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

IMPRESSÃO DA MÚSICA


Ressoa na memória a impressão da música:
por quanto tempo mais poderemos tanto?
Uma saudade obscura, uma febril antecipação?
Correu pelas veias o sangue ágil do anjo.

Silêncio trêmulo de notas percutidas,
o parentesco nos faz ainda suspensos no ar.
Quem ouve agora a moça cantar
e o violão da véspera?

Ressoa na memória a impressão da música:
se a carne lateja, é que a alma sonora
teme por teu segredo, senhora!
(Por que nos decifras aguda?)

Vamos esquecer, esquecer,
deixar o anjo ser pássaro:
correr o pano que se abriu de novo, a memória
onde ressoa a impressão da música.

Nós nos dispersamos; alguns sorriem, no dia de hoje...
Lábios ridentes em que morre a canção, dizei ao poeta
que sua mão não pode com a memória inquieta,
que só o anjo, só o anjo canta sem ela
isto que é a impressão da música.


sábado, 25 de outubro de 2014

ARS ALÉRGICA



                                 
“Sim, você pode ter bicho
− mas sem abraçar muito.”
(Aprenderia a amar de longe
ou espirrar para dentro.)
 
Começou no dia em que
pegou nuns cogumelos...
Até se saber, foi tempo.
No fim do século, quando
 
surgiram aqueles gnomos,
já provara o sortilégio
de tantas coceiras e inchaços...
Somente uma coisa boa:
 
não era, não era asma!
Só o mundo, coisa pasma
lhe dando urticárias nos olhos,
estreitando seus bronquíolos...
 
(Pólen, fumaça, fungo
− em tudo agora recolho
indícios do que seriam
a flor e o fogo: o mundo.)
 
E nadou como obrigado
porque nadar era bom;
e teve pena do cágado,
bicho da terra com
 
só a missão de purgar
o ar do menino, o ar
(e que alquimia mudar
os elementos de tom!)
 
Vacinas, vapores, unguentos
e muitos abraços teimosos
no gato, cansaram os ácaros
e os mais loucos eosinófilos.
 
(Maldito desde o Levítico,
ficou só o camarão
para o anti-histamínico ou
mucolítico sempre à mão.)
 
Alegria? Ora, a alergia
iria para a linguagem:
mentol virando placebo,
corticoide que não reage!
 
O mundo, que além das vacinas
e tantas nebulizações
agride ainda, quintina
teimosa de mil camarões
 
súbito quer poesia,
lição do menino de ontem:
doendo, espirrar para dentro;
amando, abraçar de longe.
 


sexta-feira, 30 de maio de 2014

DOIS SONETOS DE GUY GOFFETTE


A espera

Se vens para ficar, então já não me digas.
Basta a chuva − ela o disse − e o vento nas cornijas.
Nos móveis o silêncio, que neles se expande
tal qual essa poeira, que de ti prescinde.
 
Não fales coisa alguma. Outrora, essa verruma
em minha carne, escuta: cada passo, um riso
repercutido, o cão que late, uma cancela
que bate, e esse trem – já foi, ainda vem
 
sobre meus ossos. Fica, nada fales: nada
há a dizer. Deixa a velha chuva enfim chover,
e o vento marulhar nas túlias; deixa uivar
 
esse cão, ao relento; bater, essa cancela,
ir-se embora o insabido, o ermo desta espera
de eu morrer. Fica, se vens para permanecer.

 

L'Attente 
 
Si tu viens pour rester, dit-elle, ne parle pas.
Il suffit de la pluie et du vent sur les tuiles,
il suffit du silence que les meublent entassent
comme poussière depuis des siècles sans toi. 
 
Ne parle pas encore. Écoute ce qui fut
lame dans ma chair : chaque pas, un rire au loin,
l'aboiement du cabot, la portière qui claque
et ce train qui n'en finit pas de passer
 
sur mes os. Reste sans paroles : il n'y a rien
à dire. Laisse la pluie redevenir la pluie
et le vent cette marée sous les tuiles, laisse
 
le chien crier son nom dans la nuit, la portière
claquer, s'en aller l'inconnu en ce lieu nul
où je mourais. Reste si tu viens pour rester.


Menino, eu já sabia como é doce...
 
Menino, eu já sabia como é doce
partir, porque jamais deixara a barca
das colinas, varando outro horizonte
além da chuva na manhã cerrada
 
e precisava achar de qualquer jeito
o bom fanal que devolvesse os mares
a seus lugares sobre o mapa e não
entornasse. De meu, só meus dez anos
 
e mais viagens, sim, em cada bolso,
que os grandes navegantes − e olha que
se eu consenti trocar a minha Serra
 
Leoa por Yakutia, foi que
o rendado de neve, realmente,
em torno à figurinha era mais frio.
 
 
Enfant, je savais comme partir est doux...
 
Enfant, je savais comme partir est doux
pour n’avoir jamais quitté la barque
des collines, fendu d’autre horizon
que la pluie quand elle ferme le matin,
 
et qu’il me fallait à tout prix trouver
la bonne lumière pour poser les mers
à leur place sur la carte et ne pas
déborder. J’avais dix ans et
 
plus de voyages dans mes poches
que les grands navigateurs, et si
je consentais à échanger la Sierra
 
Leone contre la Yakoutie, c’est que
vraiment la dentelle de neige
autour du timbre était la plus forte.

 

 

Até onde pude pesquisar, o belga Guy Goffette é uma exceção entre os poetas francófonos de hoje: utiliza métrica (sem rigidez) e rimas (às vezes internas); revisita os velhos temas da infância e do amor; não festeja desorientações à la mode... Mas também não é hermético nem conceitual, o que para mim significa dizer, muito simplesmente, que não é chato.

Isso existe? Existe. Um poeta que não tem medo de ser lírico e não se interdita numa língua de grandes. Ao contrário, até lhes faz "biografias poéticas", como a de Verlaine -- em Verlaine d'ardoise et de pluie ("Verlaine de chuva e ardósia"). Sendo assim, permiti-me algumas liberdades nos sonetos acima: no segundo, por exemplo, troco o adjetivo "forte" (forte, que tem a mesma grafia no feminino, em francês) por "fria" (que seria froide). O menino evocado fica, talvez, mais imaginativo. Mas acho que a troca tem a ver com a poética do autor.

***

Guy Goffette nasceu em 18 de abril de 1947, em Jamoigne, Gaume, na Lorena belga. Filho de operários, teve uma infância interiorana e mais tarde ingressou na École Normale d'Arlon Libre.

Foi professor por 28 anos em Harnoncourt, antes de se lançar à aventura de impressão e publicação de revistas, primeiro com  os “cadernos” de poesia Triangle e, em seguida, com as edições do L’Apprentypographe, que dirigiu até 1987. Ao mesmo tempo, exerceu a crítica literária.

Publicou em vários gêneros e foi premiado com o Grande Prêmio de Poesia da Academia Francesa, pelo conjunto da obra, em 2001. Vive em Paris e integra conselhos editoriais da Gallimard.