quinta-feira, 17 de outubro de 2013

AS ARTES DE EULÁLIO



Qualquer pessoa que saiba o que custa de investimento pessoal, cognitivo e até financeiro pesquisar acervos, obter revistas antigas e recortes de jornal para montar um quebra-cabeça que pode se chamar biografia, mas também sociologia, história ou até crítica literária, deve estar de cabelo em pé com o lobby da MPB – Movimento Proibitivo de Biografias, por supuesto.

A MPB, ou melhor: o MPB está defendendo seus cofres e talvez alguma fofoca desabonadora, mas dá de ombros para o efeito de sua tomada de posição em um assunto tão grave como o dos direitos da personalidade, confrontados com o da livre expressão. Deus me livre de perder precioso tempo com uma biografia do Chico Buarque: adoro suas canções, declaradamente, e até já fui de muletas a um show seu no Teatro Castro Alves, mas não tenho paciência nem sequer para o narrador de Leite derramado, que, deitado no leito de um hospital, conta profusamente o lado mais sórdido de sua existência a uma filha, sempre lhe requisitando atenção: “Mas você perdeu lances fundamentais de minha vida. Do jeito que anda relapsa, quando você compilar minhas memórias vai ficar tudo desalinhavado, sem pé nem cabeça” (abertura do capítulo 21).

Eulálio d’Assumpção, o narrador preocupado com a estrutura de sua “biografia autorizada”, poderia muito bem ficar nas páginas da obra, chorando o seu leite derramado. Mas, como um dia arrisquei fazer, terá fugido de muletas para ver Chico Buarque; e, muito mais ágil e impudente, subiu assim o morro da Gávea e entrou sorrateiramente na casa do criador, fazendo-o refém e assinando declarações em seu nome. Grande Eulálio! Mais modesto, eu me contentei em aplaudir e voltar para casa.
Mas será que o Chico, quer dizer, o Eulálio, ou algum de seus amigos, está minimamente preocupado com o alcance de suas objeções à flexibilização do Código Civil?  
Lembrei-me do episódio que envolveu o poeta Lêdo Ivo quando da publicação de seu livro “O vento do mar”, uma espécie de autobiografia literária mista de antologia e reportagem fotográfica. Ao escritor que fora amigo pessoal e vizinho de Manuel Bandeira em Teresópolis, a quem o autor de “A cinza das horas” sempre incentivou – e os registros são muitos, a começar pela evidência do prêmio concedido a “Ode e elegia”, ainda na juventude de Ivo – pois a este amigo do amigo do Rei (que não é o Roberto Carlos, mas o de Pasárgada), foi negado o direito de reproduzir uma foto sem autorização e pagamento prévio.
Ocorre que Bandeira nem sequer deixou herdeiros em linha direta – não teve filhos, como diz no poema “Testamento” – mas apenas colaterais, cuja atenção para com o poeta, em vida, fora a mínima possível, como em boa hora expôs, com a verve de sempre, um indignado Lêdo Ivo.

Na entrevista, que vale a pena reler agora, Lêdo Ivo ainda chamava a atenção para os impasses criados pela família de Cecília Meireles à biografia da poeta. (Família, aliás, que muitas vezes preferiu brigar a cuidar bem do acervo.) Quer dizer, a questão da fotografia com Bandeira fora imediatamente percebida como um debate maior, e o problema das biografias – de que então nem se falava – ocorreu ao autor de “O vento do mar”.

Lêdo Ivo não desconhecia que os bens jurídicos tutelados são os mesmos: honra, imagem, intimidade, de um lado; e, de outro, liberdade de expressão e acesso ao conhecimento. E que, em caso de dano, sempre verificado a posteriori, o Direito assegura medidas cabíveis, no âmbito civil e penal – o que, todavia, não consola ainda hoje o seu conterrâneo Djavan, que vem a público justificar o partido da censura prévia com uma frase digna do General de Gaulle: “... mas o Brasil não é um país desenvolvido”.

O apoio desse mesmo Djavan, mais Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, e Milton Nascimento – todos secundando o rei Roberto Carlos − ao estatuto jurídico das autorizações prévias não atinge apenas suas próprias vidinhas: reforça todo o sistema normativo brasileiro que faz com que precisemos da autorização de herdeiros para publicar um documento de interesse público, ou até mesmo um documento próprio, como a carta de um amigo ou a fotografia com ele tirada. Ou seja, não atinge apenas gente como Ruy Castro ou editoras como a Companhia das Letras: seu espectro é muito mais amplo e chega até as pesquisas acadêmicas, confrontadas muitas vezes com herdeiros que pouco ou nada sabem sobre os espólios que administram (e de que nem sempre cuidam) indo ainda além, e atingindo inclusive o memorialismo – como no caso da biografia de Leminski escrita por Domingos Pellegrini, ou da foto que falta em “O vento do mar”.

Aliás, como dizia Lêdo Ivo, ao final da reportagem sobre a atitude dos herdeiros de Bandeira, e antecipando o alcance do debate – “Uma biografia autorizada não é uma biografia, pois atende às conveniências da família. E a verdadeira biografia, que poderia servir à compreensão do leitor, está proibida no Brasil.”

Que Eulálio não o ouça.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Os anjos de Solange

        Livro sui generis, escrito durante uma tese de doutoramento sobre a novela "O anjo", de Jorge de Lima, o volume de poemas "O Anjo encarnado" (Scortecci, 2008), da poeta alagoana Solange Chalita, é daquelas obras em que o poético não se aparta do poema, quando se percebe uma espécie de chama ou fulguração em cada peça, nenhuma anódina, nenhuma preciosista, nenhuma menos "salivada pelo Verbo" -- como se sentia o poeta querido de Solange.
 
       São 73 poemas em que uma dicção concisa, de acento clássico mas não infensa a imagens e recursos da pós-modernidade, como os cortes abruptos que deixam palavras isoladas no verso, recria o universo limiano. Um personagem estilizado, "Herói", migra das páginas de ficção da novela para os versos de Solange, que também assimilam a iconografia angélica -- "anjo custódio", "anjo anunciador" etc. -- e criam a sua própria -- "anjo pendular", "anjo maestro", "anjo de tinta", entre muitos outros.

          Momentos de candura familiar são elevados à condição de poesia em "Um anjo para Celso e Marcela", quando se pode inferir que a autora tenha presenteado com um poema a sobrinhos recém-casados ("Apareces liquefeito/aos recém-casados//(...)//e então/ passearão na vida/abraçados/ao Anjo de tinta/ da tia"). Porque esta é uma poesia que reúne e aconchega, sem  pudores de não se mostrar, eventualmente, antilírica ou bem-pensante. Se a reflexão acadêmica não fez sucumbir a poeta, muito menos o fariam as expectativas do meio literário -- com a mesma leveza do poema aos sobrinhos, a base teórica utilizada para a tese desliza para outros momentos: é o que vemos quando Jung é imaginado como leitor de Jorge de Lima, ou quando Solange rouba um anjo a Walter Benjamim -- em possível referência ao estudo "O anjo da história", o qual, por sua vez, parte de uma tela de Paul Klee.

         A autora, que é viúva do pintor alagoano de origem libanesa Pierre Chalita, e administra a Fundação com seu acervo, é certeira na tessitura de imagens. O livro, aliás, traz ilustrações de Pierre Chalita, e assim estamos diante de mais um campo dialogal, agora o do amor entre os dois artistas -- a poeta e o pintor --, que com isso atualizam uma dualidade fundadora do próprio Jorge de Lima.

         Não escapam a Solange os paroxismos de um mundo descartável e utilitário, em contraponto a essa figura emblemática da tradição religiosa -- o anjo --, escolhida como objeto e refração do "eu" lírico. Assim, por exemplo, no poema "Anjo renovador", vemos trombetas "de garrafas pet" e "asas de PVC", quando seriam de se esperar bronze e plumas. Mas, como também diria Jorge de Lima, agora no soneto "O anjo daltônico": "...muita coisa a um anjo se assemelha".

        A seguir, transcrevo "Anjo renovador" e mais dois poemas, escolhidos por absoluta preferência pessoal, neste livro em que tudo parece estar em ascensão.

        Ao terminar a leitura de "O anjo encarnado", e pensando em um Brasil talvez já farto da poesia "de coisas" -- este nosso país de asas cortadas, mais realista que o rei e mais cabralino que Cabral --, fiquei a me perguntar: isso existeMas, de resto, é essa a mesma pergunta que nos fazemos ao pensar em anjos.

 

Anjo renovador

 
Trocaste tuas asas de penas

por asas de PVC

e tuas sandálias de seda

por tiras de plástico vermelho

 
 
saudades divinas

fizeram

escorrer lágrimas

de teus olhos negramente profundos

o coração irrigado a petróleo

latejou

ritmado pelo fogo

 
 
o amor derreteu-se

 
 
caldo amargo

a saciar a sede

da humanidade agonizante


 
colorido e apocalíptico

vieste

para anunciar

o fim do mundo

com trombetas

de garrafa pet

 

 
Metamorfoses do Anjo limiano


 Da ficção

migrou para o poema

com as mesmas penas

de ave guardiã

o vôo

deixou

sombra luminosa

que Herói não viu

na busca desejada

 
Divulgação
"Paraíso tropical", tela de Pierre Chalita

 

Da narrativa

migrou para o

retrato

com asas

ortogonais

parecendo

pinto

 

  
azul e

encarnado

de perneiras e

botinas

o anjo

pousou na

retina de

Herói

maquiado

 

Da pintura

migrou para o cello

ave canora

guiando o cego

na procura

da bem-amada

morta

 

 
O Anjo de Jorge

 

Encarnado

pelas mãos de Jorge

Custódio

foi o mais humano

dos Anjos

 
dupla sombra

de Herói

viveu

teve sonhos luxuriosos

bebeu

sofreu

peregrinou pela terra

 
como redator de carta

o melhor mensageiro

espalhou aos quatro cantos

que só o amor

pode remediar a injustiça

e redimir os pecadores


 
antes de se proletarizar

cristianizou-se





O livro:

"O anjo encarnado", menção honrosa do I Prêmio de Literatura UBE/Scortecci - 2005

A autora:

Solange Berard Lages Chalita
é doutora em Letras, poeta e artista plástica, presidente da Fundação Pierre Chalita (Maceió-AL).


Publicou também "Canto Anônimo" (poesia - 1967); "Canto Sinônimo" (poesia - 1970); "Canto/Desencanto" (poesia - 1975); "Passagem" (contos - 1979); "Lily Lages" (ensaio - 1978); "Teatro em dois tempos" (ensaio - 1994); "Uma leitura junguiana do cordel nordestino: dois exemplos" (ensaio - 2002); e "Canto mínimo" (poesia- 2008).

Acima, Solange e Pierre Chalita.