quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

RECEITA PARA UM NATAL



 Primeiro, ficar parado

durante um momento, de pé

ou sentado, numa sala ou mesmo

noutra dependência do lar.

Depois preparar

os olhos, as mãos, a memória

e outros utensílios indispensáveis. A seguir

começar a reunir

coisas, por ordem bem do interior

do coração e do pensamento:

a ternura dos avós, uma mancheia;

rostos de primos distantes, uma pitada;

sons de sinos ao longe, quanto baste;

a recordação duma rua, uns bocadinhos

um velho livro de quadradinhos

duas angústias mais tardias, alguns restos de azevias,

a lembrança de vizinhos   ainda vivos mas ausentes

e de uns já passados.

Quatro beijos de seres amados ou de parentes

um cachecol de boa lã  cinzenta aos quadrados

e um pouco de azeite puro e fresco

igual ao que a mãe usava noutro tempo saudoso.

Mexe-se bem, leva-se ao forno

e fica pronto e saboroso

 

mesmo que, nostálgica,  se solte uma pequena lágrima.


Nicolau Saião
in “Escrita e o seu contrário”

                                                                                                                     

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Inquisições no Museu


 
De Arte Sacra e saqueado,

seus poucos santos sobrados

fazem pensar nos ladrões.

 

Mais turista que prelado,

entre um nicho e outro vago,

começo as inquisições:

 

perdoada, Madalena,

mereceu condenações?
 
E Cecília, santa mártir,

 

foi salva, de sua parte,

pelas poucas devoções?

De Teresa, confidente,

 

não viram, no olhar ausente,

o êxtase das visões?

São Francisco, despojado,

 

mais pobre que o desejado,

inspirava abnegações?

As hipóteses latejam

 

no tabuado que estala:

atraso em manutenções.

Do claustro, o jardim no centro,

 

nivelado com cimento,

enclausura florações.

É a mesma ignomínia

 

de uma reforma faminta:

certa pia de alumínio

no salão de refeições.

 

No museu dilapidado,

outrora convento e igreja,

não há quase que se veja:

 

só vazio, por todo lado

− rarefeitos encontrões.

Um Senhor Morto, deitado,

 

sem o féretro esperado,

semelha o Crucificado

sem madeiro, que roubaram

 

essas outras legiões:

braços abertos no ar

ou pendidos, par em par,

 

aguardam fortes ladrões:

são pesados de levar?


São leves ressurreições!
 
 

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

AS ARTES DE EULÁLIO



Qualquer pessoa que saiba o que custa de investimento pessoal, cognitivo e até financeiro pesquisar acervos, obter revistas antigas e recortes de jornal para montar um quebra-cabeça que pode se chamar biografia, mas também sociologia, história ou até crítica literária, deve estar de cabelo em pé com o lobby da MPB – Movimento Proibitivo de Biografias, por supuesto.

A MPB, ou melhor: o MPB está defendendo seus cofres e talvez alguma fofoca desabonadora, mas dá de ombros para o efeito de sua tomada de posição em um assunto tão grave como o dos direitos da personalidade, confrontados com o da livre expressão. Deus me livre de perder precioso tempo com uma biografia do Chico Buarque: adoro suas canções, declaradamente, e até já fui de muletas a um show seu no Teatro Castro Alves, mas não tenho paciência nem sequer para o narrador de Leite derramado, que, deitado no leito de um hospital, conta profusamente o lado mais sórdido de sua existência a uma filha, sempre lhe requisitando atenção: “Mas você perdeu lances fundamentais de minha vida. Do jeito que anda relapsa, quando você compilar minhas memórias vai ficar tudo desalinhavado, sem pé nem cabeça” (abertura do capítulo 21).

Eulálio d’Assumpção, o narrador preocupado com a estrutura de sua “biografia autorizada”, poderia muito bem ficar nas páginas da obra, chorando o seu leite derramado. Mas, como um dia arrisquei fazer, terá fugido de muletas para ver Chico Buarque; e, muito mais ágil e impudente, subiu assim o morro da Gávea e entrou sorrateiramente na casa do criador, fazendo-o refém e assinando declarações em seu nome. Grande Eulálio! Mais modesto, eu me contentei em aplaudir e voltar para casa.
Mas será que o Chico, quer dizer, o Eulálio, ou algum de seus amigos, está minimamente preocupado com o alcance de suas objeções à flexibilização do Código Civil?  
Lembrei-me do episódio que envolveu o poeta Lêdo Ivo quando da publicação de seu livro “O vento do mar”, uma espécie de autobiografia literária mista de antologia e reportagem fotográfica. Ao escritor que fora amigo pessoal e vizinho de Manuel Bandeira em Teresópolis, a quem o autor de “A cinza das horas” sempre incentivou – e os registros são muitos, a começar pela evidência do prêmio concedido a “Ode e elegia”, ainda na juventude de Ivo – pois a este amigo do amigo do Rei (que não é o Roberto Carlos, mas o de Pasárgada), foi negado o direito de reproduzir uma foto sem autorização e pagamento prévio.
Ocorre que Bandeira nem sequer deixou herdeiros em linha direta – não teve filhos, como diz no poema “Testamento” – mas apenas colaterais, cuja atenção para com o poeta, em vida, fora a mínima possível, como em boa hora expôs, com a verve de sempre, um indignado Lêdo Ivo.

Na entrevista, que vale a pena reler agora, Lêdo Ivo ainda chamava a atenção para os impasses criados pela família de Cecília Meireles à biografia da poeta. (Família, aliás, que muitas vezes preferiu brigar a cuidar bem do acervo.) Quer dizer, a questão da fotografia com Bandeira fora imediatamente percebida como um debate maior, e o problema das biografias – de que então nem se falava – ocorreu ao autor de “O vento do mar”.

Lêdo Ivo não desconhecia que os bens jurídicos tutelados são os mesmos: honra, imagem, intimidade, de um lado; e, de outro, liberdade de expressão e acesso ao conhecimento. E que, em caso de dano, sempre verificado a posteriori, o Direito assegura medidas cabíveis, no âmbito civil e penal – o que, todavia, não consola ainda hoje o seu conterrâneo Djavan, que vem a público justificar o partido da censura prévia com uma frase digna do General de Gaulle: “... mas o Brasil não é um país desenvolvido”.

O apoio desse mesmo Djavan, mais Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, e Milton Nascimento – todos secundando o rei Roberto Carlos − ao estatuto jurídico das autorizações prévias não atinge apenas suas próprias vidinhas: reforça todo o sistema normativo brasileiro que faz com que precisemos da autorização de herdeiros para publicar um documento de interesse público, ou até mesmo um documento próprio, como a carta de um amigo ou a fotografia com ele tirada. Ou seja, não atinge apenas gente como Ruy Castro ou editoras como a Companhia das Letras: seu espectro é muito mais amplo e chega até as pesquisas acadêmicas, confrontadas muitas vezes com herdeiros que pouco ou nada sabem sobre os espólios que administram (e de que nem sempre cuidam) indo ainda além, e atingindo inclusive o memorialismo – como no caso da biografia de Leminski escrita por Domingos Pellegrini, ou da foto que falta em “O vento do mar”.

Aliás, como dizia Lêdo Ivo, ao final da reportagem sobre a atitude dos herdeiros de Bandeira, e antecipando o alcance do debate – “Uma biografia autorizada não é uma biografia, pois atende às conveniências da família. E a verdadeira biografia, que poderia servir à compreensão do leitor, está proibida no Brasil.”

Que Eulálio não o ouça.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Os anjos de Solange

        Livro sui generis, escrito durante uma tese de doutoramento sobre a novela "O anjo", de Jorge de Lima, o volume de poemas "O Anjo encarnado" (Scortecci, 2008), da poeta alagoana Solange Chalita, é daquelas obras em que o poético não se aparta do poema, quando se percebe uma espécie de chama ou fulguração em cada peça, nenhuma anódina, nenhuma preciosista, nenhuma menos "salivada pelo Verbo" -- como se sentia o poeta querido de Solange.
 
       São 73 poemas em que uma dicção concisa, de acento clássico mas não infensa a imagens e recursos da pós-modernidade, como os cortes abruptos que deixam palavras isoladas no verso, recria o universo limiano. Um personagem estilizado, "Herói", migra das páginas de ficção da novela para os versos de Solange, que também assimilam a iconografia angélica -- "anjo custódio", "anjo anunciador" etc. -- e criam a sua própria -- "anjo pendular", "anjo maestro", "anjo de tinta", entre muitos outros.

          Momentos de candura familiar são elevados à condição de poesia em "Um anjo para Celso e Marcela", quando se pode inferir que a autora tenha presenteado com um poema a sobrinhos recém-casados ("Apareces liquefeito/aos recém-casados//(...)//e então/ passearão na vida/abraçados/ao Anjo de tinta/ da tia"). Porque esta é uma poesia que reúne e aconchega, sem  pudores de não se mostrar, eventualmente, antilírica ou bem-pensante. Se a reflexão acadêmica não fez sucumbir a poeta, muito menos o fariam as expectativas do meio literário -- com a mesma leveza do poema aos sobrinhos, a base teórica utilizada para a tese desliza para outros momentos: é o que vemos quando Jung é imaginado como leitor de Jorge de Lima, ou quando Solange rouba um anjo a Walter Benjamim -- em possível referência ao estudo "O anjo da história", o qual, por sua vez, parte de uma tela de Paul Klee.

         A autora, que é viúva do pintor alagoano de origem libanesa Pierre Chalita, e administra a Fundação com seu acervo, é certeira na tessitura de imagens. O livro, aliás, traz ilustrações de Pierre Chalita, e assim estamos diante de mais um campo dialogal, agora o do amor entre os dois artistas -- a poeta e o pintor --, que com isso atualizam uma dualidade fundadora do próprio Jorge de Lima.

         Não escapam a Solange os paroxismos de um mundo descartável e utilitário, em contraponto a essa figura emblemática da tradição religiosa -- o anjo --, escolhida como objeto e refração do "eu" lírico. Assim, por exemplo, no poema "Anjo renovador", vemos trombetas "de garrafas pet" e "asas de PVC", quando seriam de se esperar bronze e plumas. Mas, como também diria Jorge de Lima, agora no soneto "O anjo daltônico": "...muita coisa a um anjo se assemelha".

        A seguir, transcrevo "Anjo renovador" e mais dois poemas, escolhidos por absoluta preferência pessoal, neste livro em que tudo parece estar em ascensão.

        Ao terminar a leitura de "O anjo encarnado", e pensando em um Brasil talvez já farto da poesia "de coisas" -- este nosso país de asas cortadas, mais realista que o rei e mais cabralino que Cabral --, fiquei a me perguntar: isso existeMas, de resto, é essa a mesma pergunta que nos fazemos ao pensar em anjos.

 

Anjo renovador

 
Trocaste tuas asas de penas

por asas de PVC

e tuas sandálias de seda

por tiras de plástico vermelho

 
 
saudades divinas

fizeram

escorrer lágrimas

de teus olhos negramente profundos

o coração irrigado a petróleo

latejou

ritmado pelo fogo

 
 
o amor derreteu-se

 
 
caldo amargo

a saciar a sede

da humanidade agonizante


 
colorido e apocalíptico

vieste

para anunciar

o fim do mundo

com trombetas

de garrafa pet

 

 
Metamorfoses do Anjo limiano


 Da ficção

migrou para o poema

com as mesmas penas

de ave guardiã

o vôo

deixou

sombra luminosa

que Herói não viu

na busca desejada

 
Divulgação
"Paraíso tropical", tela de Pierre Chalita

 

Da narrativa

migrou para o

retrato

com asas

ortogonais

parecendo

pinto

 

  
azul e

encarnado

de perneiras e

botinas

o anjo

pousou na

retina de

Herói

maquiado

 

Da pintura

migrou para o cello

ave canora

guiando o cego

na procura

da bem-amada

morta

 

 
O Anjo de Jorge

 

Encarnado

pelas mãos de Jorge

Custódio

foi o mais humano

dos Anjos

 
dupla sombra

de Herói

viveu

teve sonhos luxuriosos

bebeu

sofreu

peregrinou pela terra

 
como redator de carta

o melhor mensageiro

espalhou aos quatro cantos

que só o amor

pode remediar a injustiça

e redimir os pecadores


 
antes de se proletarizar

cristianizou-se





O livro:

"O anjo encarnado", menção honrosa do I Prêmio de Literatura UBE/Scortecci - 2005

A autora:

Solange Berard Lages Chalita
é doutora em Letras, poeta e artista plástica, presidente da Fundação Pierre Chalita (Maceió-AL).


Publicou também "Canto Anônimo" (poesia - 1967); "Canto Sinônimo" (poesia - 1970); "Canto/Desencanto" (poesia - 1975); "Passagem" (contos - 1979); "Lily Lages" (ensaio - 1978); "Teatro em dois tempos" (ensaio - 1994); "Uma leitura junguiana do cordel nordestino: dois exemplos" (ensaio - 2002); e "Canto mínimo" (poesia- 2008).

Acima, Solange e Pierre Chalita.


 

domingo, 22 de setembro de 2013

NUVENS, RAÍZES. FLORES


 
“Para o médico é muito evidente, mas para o leigo talvez não:
a pneumonia não é ali – ali é o coração.

A pneumonia são essas manchas brancas
essas nuvens – está vendo? essas nuvens brancas

aqui, como umas raízes”
− olhei: havia na chapa, de fato,


uma noite nebulosa que era também uma ár-

vore  revirada.

 
§

As nuvens de um céu da infância?
Raízes da algaroba plantada por meu tio?


Antes da saúde, foi-me dado saber:
metáfora ou memória podem ser traição.

 
§

Ah, mas como quisera ter dito:
AS FLORES DO PÁTIO BOIAVAM NO AR.

Foi no dia da alta. Consta que ainda houvesse

alguma radícula, ou cirro, em meu pulmão:
“A verdade clínica é sempre mais rápida que a radiográfica”

− ainda ouvi. Mas calei sobre as flores.

 
§

Menino logrado, vinguei-me
com uma colagem. Vai aqui:

 
 A verdade poética, embora muito evidente
é sempre mais lenta.

Mais lenta que a clínica, mais lenta

que a radiográfica.
As nuvens nos traem. As memórias

igual: as raízes.

Bate um coração com pneumonia.

 
§

Respiro. Durante tudo,
o amor frequentou o céu embruscado, enredou-se

na garabulha. Fácil, fácil,

desvencilhou-se. Entrava sem avisar:

simplesmente escancarava a janela.


 §

Cortar as unhas, cabelos! O corpo-algaroba
teimando em primavera... O poema

seguira a mesma lei: fiz ainda uma canção. Encerro com ela:

 

Leigo não sou,
doutor é que não:

sobra-me o vão

entre o silêncio e o jargão.
Nuvens, raízes

− tu vens, amor... E não me dizes!
 Saudade, saúde: dou-te a muito evidente

flor de ar – convalescente.
 



Edvard Munch: Autorretrato depois da gripe (1919) 

terça-feira, 18 de junho de 2013

Lêdo & Lygia: São Paulo, Livraria Teixeira, 1973




O encontro foi matéria da coluna de 10 de dezembro de 1973, do jornalista Tavares de Miranda, na Folha de São Paulo. Na Livraria Teixeira, em Sampa, Lêdo Ivo lançava Ninho de cobras, e Lygia, As meninas, ambos publicados pela José Olympio. Na legenda da foto, Miranda adverte que, “quando duas personalidades literárias como Lêdo Ivo e Lygia Fagundes Telles [...] se encontram, o melhor que vocês têm a fazer, meus amigos, é escutar o diálogo”. E apresenta aos leitores duas pequenas séries de questões de um escritor a outro, no estilo “pingue-pongue” que ainda hoje é mania de nossa imprensa.
Se o colunista ou outro colega da Folha pautou as perguntas, não sei. Mas o encontro  vale pelo que significa como "momento" de nossa cultura, e sobretudo pelos dois autores, tão diferentes e tão próximos: um poeta que escreve romances e uma romancista que sempre se refere a poetas quando chamada a refletir sobre seu ofício (é o que faz Lygia, aliás, em uma das respostas, como poderemos conferir).
Abaixo transcrevo a matéria, que ilustrei com capas das primeiras e das mais recentes edições de Ninho de Cobras e de As meninas. Não estranhem a ausência da primeira pergunta: é assim mesmo que está no jornal, subentendida na resposta de Lygia. Registro ainda que, tendo tomado conhecimento desse  encontro memorável pesquisando no Acervo Lêdo Ivo do Instituto Moreira Salles (RJ), fiquei surpreso e feliz ao descobrir que a própria Folha de São Paulo disponibiliza gratuitamente a matéria, como outras de seu acervo, no site do jornal (por tempo indeterminado, e quero crer que eterno). Clique aquie veja o arquivo original da Folha, enquanto podemos!  
Desta vez não vou me alongar no post, que também destoa dos demais por não ser exatamente uma reflexão de crítica literária. Mas o motivo é dos mais nobres: aí estão, juntos, meus dois queridos escritores, em uma cena que materializa a mélange de minhas leituras mais afetivas: Lêdo Ivo, com seu mar simbólico, seu pendor para o mergulho na história alagoana e no passado literário, que um dia explodiu na prosa luxuriante de Ninho de cobras; e Lygia, urbana e intimista, com o jogo de vozes de suas meninas, a maestria do detalhe, os pequenos símbolos cotidianos alçados a uma dimensão maior − instituindo no texto aquele simbolismo ad hoc que José Paulo Paes tão bem definiu, em ensaio sobre a autora, nos Cadernos de Literatura Brasileira do IMS.
Mas já vou falando demais. Como bem dizia Tavares de Miranda, em 1973 e ainda com grande valia, o melhor a fazer é escutar esse diálogo. Vamos a ele!
 
 
Lêdo Ivo pergunta a Lygia Fagundes Telles...
  
− Parti da realidade para a ficção. Sei que em estado bruto minhas meninas existem, estão aí. Como ponto de partida tomei-as assim meio informes, sem características mais profundas, os traços ainda indefinidos; vieram como nebulosas. Tomei-as e fui trabalhando em cada uma, lenta e pacientemente, afinal, tudo somado, creio que há mais de três anos, convivi intimamente com essas três: Lorena, Lia e Ana Clara. Em qual delas eu fiquei mais? Ah, difícil dizer. A uma dei um gesto, a outra, um pensamento mais secreto que morreu em minha boca para renascer na de Lorena ou Lia... As personagens são como vampiros, cravam os caninos na nossa jugular e, quando amanhece, voltam aos seus sepulcros até que anoiteça de novo. O fim do livro é a tampa que baixa sobre esses nossos visitantes. Definitivamente? Não. Um dia, de repente, com outro nome e outras feições, volta escamoteada a mesma personagem, elas gostam da vida. Como nós.
 
2 - Que importância tem o amor na infraestrutura de suas personagens?
− Importância definitiva. Escrevi esse romance [As meninas] com o maior amor, me emocionei com as personagens principais, que são jovens e amam e desamam o tempo todo e nesse desandar emocional fui também me comovendo, mas sem perder as rédeas no galope, um galope perigoso porque pode descambar para o sentimentalismo. Então a gente precisa ficar completamente lúcida para que o Amor – que é imprevisto, loucura – não se enfraqueça na sua própria força.
 
3 − O escritor pode às vezes ter remorso do que faz com as personagens?
− Sim, pode ter remorso. Como a gente pode ter às vezes remorso com as personagens de verdade, aquelas que um dia a gente feriu – sem querer ou não, consciente ou inconscientemente – e esse ferimento que não cicatriza é visível até na morte. Ah, o remorso.  Eu não queria matar a jovem – a mais louca delas – mas descobri que o remorso que eu teria por deixá-la viva seria mais agudo do que se a eliminasse.
 
4 - Que é que você pensa do papel do escritor? Da luta do escritor?
− Nesta nossa guerra sem testemunhas temos que ser principalmente as testemunhas dessa nossa sociedade com todos os seus vícios. E raras virtudes. Lutar com as palavras é a luta mais vã/ entanto lutamos/ mal rompe a manhã. Mal rompe a manhã. Uns lutam com o cimento armado. Com as leis. Com os bisturis. Com as máquinas – tantas e tão variadas lutas. Eu luto com as palavras. É bom? É ruim? Não interessa. É a minha vocação.
 
Lygia Fagundes Telles pergunta a Lêdo Ivo...
 
A – Por que o seu romance tem, como subtítulo, “uma história mal contada”?
− Porque, na verdade, é uma história mal contada, quer como técnica de narrativa, quer como intenção deliberada do autor de apresentar um pequeno universo imaginário fervilhante de suposições, dúvidas, versões e interrogações sobre a própria realidade da intriga. Entendo, aliás, que o romance, como história bem contada, pertence à literatura do século XIX. Flaubert, Balzac e Tolstói são os grandes mestres, nesse sentido. As transformações que desde o começo deste século se acentuaram no romance, documentando incontáveis mudanças em sua forma, forçaram os romancistas a adotar um sistema narrativo caracterizado pelo contraponto e pela polilinearidade (que substituem a linearidade clássica) − Joyce, Faulkner, os expoentes do nouveau romanfrancês [...] aí estão, ao lado de Proust e de Henry James, para testemunhar essa nova realidade do romance.
 
B – Ninho de Cobrasé um romance de amor?
− História, ou conjunto de histórias que refletem os sentimento fundamentais do homem – amor, ódio, medo, ambição,  incerteza – o meu livro é, também, um romance de amor. Assim como é um romance de terror e violência, ou de busca e perseguição de uma verdade que tanto é divina como é humana. A minha intenção foi contar uma história, ou malcontar uma história.
 
C – A raposa que, no seu romance, percorre a cidade adormecida e depois é abatida, tem algum sentido simbólico?
− A leitura de um romance funde a imaginação do autor com a do leitor, que também “colabora” com a obra, na medida em que a interpreta ou a reinventa à sua maneira. Dentro dessa perspectiva, a raposa do meu romance pode significar algo – a fonte da vida, a inocência, a liberdade, o amor  – mas isto depende do leitor empenhado em ver numa obra os vários níveis de significados que estiveram ou não presentes durante o seu processo de criação. Mas é preciso reconhecer que, às vezes, certas verdades, evidências, aspirações ou angústias penetram numa obra sem que o autor o pressinta na ocasião em que a escreve.
 
D – Quais são os seus romancistas prediletos?
 
− Depende do ano, do mês e da hora. Além disso, não sei se esses autores favoritos (Proust, Melville, Dostoievski, Flaubert, Balzac), realmente me influenciaram, ou se minhas marcas devem ser buscadas em outros lugares – numa bula de remédio, num romance policial ou num anúncio de jornal.
 
E – A literatura está morrendo?
− Documento e testemunho do homem e da vida, ela existirá enquanto existir o mundo. Algúem tem que dizer o que está realmente acontecendo. E este alguém são os poetas, pintores, escultores, músicos, romancistas. Isto é, alguém dotado da capacidade de ver e de contar ao seu semelhante o que viu e sentiu, através de uma forma artística dotada de validade e emoção